Tudo é perdido: montagem e pré-estreia

A conclusão da escrita de Tudo é perdido quando o desejo fica repartido exigiu reelaborar o planejamento dos episódios anteriormente propostos, a partir de uma projeção da concretude da montagem da peça. Ou seja, prevendo os deslocamentos dos instrumentistas e assistentes, o uso da iluminação.

Planejamento da sequência de episódios, (re)elaborado na etapa de escrita.

A escrita dos episódios 1 a 4 estabeleceu o conjunto de materiais sonoros da peça, que servem de base para a escrita e para improvisações nos episódios seguintes. Exploram-se semelhanças gestuais e distinções tonais entre as duas partes instrumentais. A analogia que eu tinha em mente era a do relacionamento disfuncional: dizem coisas diferentes quando parecem dizer o mesmo ou, ao contrário, pensam dizer o mesmo quando dizem coisas diferentes.

A partitura/roteiro, concluída na fase de escrita, traz as indicações gerais para concretização da performance, permitindo-se, entretanto, deixar detalhes para definição na montagem em Mossoró-RN. Essa abertura permitiu que importantes ajustes e desdobramentos das ações previstas no roteiro fossem desenvolvidos nos ensaios.

Do ponto de vista sonoro, os seguintes aspectos foram definidos na montagem:
  • episódio 6, em que Renan é interrompido por sons repentinos produzidos pelos assistentes espalhados pela sala, está indicado na partitura como jogo em que o instrumentista improvisa a partir de materiais musicais apresentados anteriormente na peça, enquanto reage genuinamente às interrupções;
  • episódio 7, em que Renan e Sabrina confrontam-se frente à frente, está indicado na partitura também como jogo em que se interrompem enquanto tentam tocar, improvisando a partir de materiais musicais apresentados anteriormente na peça;
  • as intervenções dos intérpretes com ações sonoras de "sussurros" no episódio 2 e "pancadas" no episódio 6, bem como a aproximação aos instrumentistas que provoca o desfecho do enfrentamento no episódio 7;
  • a inserção de bricolagens de sons pré-gravados, assumida como uma espécie de sonoplastia cênica, que aumenta a densidade sonora de trechos especialmente dramáticos e proporciona a conexão sonora em momentos que os instrumentistas não estão tocando, como a transição entre os episódios 7 e 8.

O uso das lanternas de cabeça pelos instrumentistas revelou possibilidades que não havia sido possível prever na escrita. Ao olhar para a partitura, o reflexo da luz no papel iluminava o instrumentista. Quando voltava o olhar para outro ponto, como o braço do violão, o instrumentista como que se ocultava, desviando o foco visual exclusivamente para a área iluminada. Além disso, o fato não previsto de que a lanterna produzia uma luz vermelha, além da luz branca, foi incorporado ao roteiro de iluminação.

Renan e Sabrina durante a performance de "...repartido" em Mossoró-RN, em 27 de março de 2019.

O episódio 8 foi concebido como uma recapitulação desencontrada, interrompida por um lampejo melódico e concluído como dissolução visual e sonora da performance. A separação espacial dos performers, planejada na escrita e implementada na montagem, mostrou-se eficaz para fazer os materiais sonoros chegarem aos ouvintes de maneira dissociada, embora ritmicamente relacionadas nesse momento de conclusão da peça.

Tudo é perdido quando o desejo fica repartido tem como principal marca da colaboração criativa, a força da cumplicidade musical e pessoal de Renan e Sabrina levada ao limite sobre o palco. A peça apresenta o que eles se permitiram e se descobriram fazendo, a partir de provocações apresentadas por mim em nossas oficinas. Assim, os trechos de improvisação são orgânicos à peça, pois surgem da mesma matriz que o trabalho de composição e de escrita da partitura: uma série de situações de performance, de gestos e de interações exploradas primeiro como possibilidades corporais e, depois, como elementos de forma/estrutura/sentido/narrativa.


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