Uma charlada sobre-com-e-através do piano


Anteriormente abordei alguns tópicos os quais considerei relevantes quanto ao desenvolvimento da identidade do grupo. Agora relato como esses aspectos aparecem e/ou me estimulam na elaboração da minha performance da Charla n.º 1 para piano. Conforme a carruagem anda – e as ideias abóboras vão se ajeitando –, farei o mesmo com as demais peças que já toquei e que ainda tocarei, no entanto, como o processo da Charla n.º 1 ainda está bastante vivo na memória em comparação com Sururus […], por exemplo, começarei por ela. Antes, uma característica que deve ser lembrada sobre as Charlas é que elas foram pensadas para serem apresentadas a um único ouvinte por vez, de maneira mais íntima e próxima do intérprete. 

Resumidamente, a peça apresenta-se da seguinte maneira: 


Seção A) Abaixo do piano => Difusão; 
Seção B) Interior do piano; 
Seção C) Teclado [Decidido]; 
Seção D) [Indeciso]; 
Seção E) [Uma busca] => Trecho de Le tombeau de Couperin, Ravel => Comentário do intérprete; 
Seção F) Vivo; 
Seção G) Lento e ressoante;


Minhas primeiras ideias interpretativas para a Charla n.º 1 surgiram após uma conversa com o compositor Heitor Oliveira. Na ocasião, Heitor explicou que a obra em si propunha a ideia de um percurso pelo instrumento: o intérprete começa tocando na parte de baixo do piano (Seção A), na tela harmônica e nas traves de madeira, segue para o interior do instrumento (Seção B) com ataques nas cordas, na estrutura da lira e nas traves de metal e, por fim, chega ao teclado (Seção C). Com essas ideias em mente, nas seções A e B tentei criar uma intenção de convite ao espectador, tentando cativá-lo para ouvir e vivenciar a performance de fora para dentro, do geral para o íntimo, fazendo jus à proposta original da peça: há uma série de sonoridades e nuances que só podem ser bem apreciadas estando próximo ao intérprete, como por exemplo, determinados efeitos de ressonâncias, ataques sutis realizados nas cordas com a baqueta de ponta de feltro e percussões realizadas nas traves de metal com as mãos. Na seção A, em que toco na madeira na parte inferior do instrumento, sempre penso como sendo “alguém batendo à porta...”, um benquisto pedido para entrar em um espaço particular. Na seção B, as vozes que invadem o ambiente vão ganhando forma! Busquei criar uma atmosfera de burburinho com as ressonâncias e as sobreposições que ocorrem com a difusão sonora através da caixa de som. Uma vez essa conexão estabelecida, ouvinte e pianista aproximam-se para vivenciar as possibilidades de diálogos do contato um-para-um. 

A Seção C caracteriza-se por um ritmo enérgico na região grave e média-grave do piano que em determinados momentos é interrompido por sons nas regiões agudas em dinâmica contrastante (p): 

Figura 1: Trecho da seção C (c. 27 - 28). Figuração característica da seção.

No decorrer dessa seção a frequência com que as interrupções acontecem fica menor. Para dar fluxo ao meu intento de cativar o ouvinte durante os eventos das seções A e B, uso essas interrupções mais ou menos como a ideia de uma pessoa que tenta narrar um fato e é constantemente interrompida por algo sutil porém marcante que vem de fora. Narrativamente, essa seção adquire um sentido muito interessante após as seções A e B: quando enfim sento com as mãos ao teclado, é como se eu tivesse, enfim, encontrado uma fala, uma trajetória obstinada cujo ritmo é seu reflexo, no entanto, suscetível a desestabilizações por conta das intervenções. 

As seções D [Indeciso] e E [Uma busca] são momentos em que a relação íntima e direta com o ouvinte se intensifica. As melodias carregadas de suspense da Seção D criam expectativas no ouvinte que, quando somadas aos contatos visuais realizados com a ação de abaixar as teclas sem emitir sons, geram sensações interrogativas. Aos poucos, outras interrogações vão surgindo em forma de excertos ou sugestões das melodias pertencentes à seção E:

Figura 2: Trecho do final da seção D. (c. 80 - 84). Exemplo de excerto interrogativo que prepara a entrada da seção E no c. 82.

Após dois compassos com arpejos de suspense, termino a seção E tocando um trecho de uma peça do meu repertório – Prelúdio da suíte Le Tombeau de Couperin, de M. Ravel – e, enquanto toco, faço alguns comentários sobre essa peça ao ouvinte. Aqui encaro como sendo o famoso “Então, mudando de assunto…”. As seções D e E formam palco para um tipo que, inclusive, deriva da palavra charla: o charlatão, aquele sujeito de boa lábia, persuasivo, que quando percebe que a pessoa a quem se dirige está prestes a se esquivar, muda de assunto e a captura novamente. 

Uma das características que mais me chama a atenção na Seção F são as articulações. Assim que toquei essa seção pela primeira vez percebi um ritmo muito semelhante ao da fala humana, de algo sendo dito às pressas ou de maneira afobada, presente tanto nas articulações dos grupos de semicolcheias quanto nos perfis intervalares das frases; determinados tipos de fala se caracterizam pelo timbre em uma mesma região com leves variações de alturas acima e abaixo, mas mantendo a insistência em uma região determinada. Quando toco, procuro fazer o piano tagarelar, como se o charlatão de antes quisesse alongar o máximo a conversa com a vítima, digo… o ouvinte ao perceber que seu arsenal de truques está se esgotando:

Figura 3: Trecho da seção F (c. 106 - 108). "Tagarelice" ao piano!

Tanta artimanha e persuasão, mesmo com o melhor dos charlatões, uma hora se desfaz. Na Charla para piano é na seção G que isso acontece. Ali, aos poucos a música vai retornando às entranhas do instrumento – seu interior – de onde a vontade do dialogar havia nascido. 


Coisas fora do lugar... 


Aproveitando a reflexão e fazendo já um exercício para as próximas apresentações, foi muito significativo perceber a relação entre a minha sensação durante a estreia e a ideia original da obra, dela ter sido pensada para uma situação íntima. Partindo do que Heitor havia me dito sobre as Charlas serem elaboradas a partir dessa proposta, minhas preocupações durante os ensaios recaíram exclusivamente sobre o trato com as sonoridades e nuances sutis, as quais em uma situação convencional de concerto – ouvinte distante do pianista – dificilmente seriam percebidas. No entanto, com a experiência da estreia, percebi que todas as minhas ações, desde movimentos, olhares, respirações até intenções, resultaram maximizadas pela proximidade. Essa condição permite que o espectador perceba quando eu estou afoito, ansioso, preocupado, focado entre outras tantas nuances possíveis das expressões humanas e isto, sem esforço para ser - pois de fato me encontro nesses estados -, acaba sendo parte da comunicação e da própria situação da Charla. Os estados pelos quais transito durante a peça tornam-se cenas espontâneas compostas em função da situação de performance em que me encontro, lição essa que muito vivenciei com outras experiências com Heitor, notadamente em As gerações dos mortais assemelham-se às folhas das árvores (2017) e que aqui é revivida a partir de outros ângulos, quase que como um efeito colateral muito sutil, mas inevitavelmente presente. É extremamente arrebatadora esse tipo de experiência pois todos esses meus estados, principalmente os que estão em um espectro de maior instabilidade como a ansiedade e o nervosismo, são estados que, geralmente, somos treinados a não transparecer em palco. A voz trêmula entrega o nervosismo, as palavras atropeladas escancaram a euforia: assim é que se charla!

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