Caleidoscópio, Parte 2: Ex situ... In situ...

No texto anterior – Caleidoscópio, Parte 1: Identidade – refleti sobre a identidade do grupo a partir de aspectos que, na minha perspectiva, destacaram-se ao longo de nossas etapas anteriores realizadas em Porto Alegre/RS, Mossoró/RN e Ribeirão Preto/SP. Apontei o “[…] deslocamento, as coisas fora de lugar e o dialogar” como elementos que parecem de alguma maneira moldar o que então denominei identidade. Além da busca por um melhor entendimento sobre nossas características identitárias e estilísticas, aquele texto foi também uma tentativa de organizar a miríade de ideias, experiências e informações que me marcaram até aquele momento. Agora enquanto escrevo, relendo e refletindo sobre o que já temos registrado aqui no blog, vejo-me motivado a fazer algumas observações sobre os ganhos de recursos expressivos que obtive ao longo de nossas jornadas e da minha relação com as coisas com as quais mais me identifiquei. Afinal, o que sou eu nisso tudo? Qual a origem desse meu universo artístico e tudo mais? Pergunta nada nova – dizem por aí que a resposta é 42¹ – porém, feita dentro de um universo cujo Big-Bang presenciei! “De que diabos você está falando, Dario?”.

Ex situ… in situ…² 


Autorreflexão em um processo criativo é encarar o inevitável movimento dentro-fora, micro-macro, eu-outrem e vice-versa.

Quando decidi me aventurar pelas sendas da música contemporânea, em especial, a brasileira, assim fiz para aprimorar as minhas observações e interpretações do meu entorno e, consequentemente, do modo como me relaciono com ele. Investigando as raízes mais profundas dessas minhas inquietudes reconheço que há uma frequente busca pelo entendimento de como e por quais vias as manifestações artísticas se consubstanciam, e o que há nelas e em seus agentes que permite a variada profusão de interpretações.

As vivências que tivemos nas oficinas com os assistentes tornaram-se indissociáveis de nossas produções artísticas e do modo como as criamos e executamos. Durante as gravações de excertos para serem editados e reproduzidos durante algumas das peças, os sons produzidos pelos assistentes através de seus instrumentos ou objetos disponíveis nos ambientes despertaram em mim um rol de ideias de toques ao piano, pedalizações e timbres; as atitudes dos assistentes com figurinos durante o sorteio de trechos musicais para serem tocados em "Sururus e quiprocós […]", igualmente influenciaram meu estado comportamental durante as performances, fornecendo-me parâmetros de caráter e humor; a minha relação quase circadiana com as iluminações que criamos para as apresentações corroborou para as minhas escolhas acerca das amplitudes de minhas gestualidades, modos de movimentação e ciclo de humores; o bate-papo que tive com Mussorgsky (1839 – 1881) durante a elaboração do nosso trajeto no ciclo das "Charlas" e do "Charlatório" em que eu, uma das exposições, tive que me autorretratar e criar o meu quadro; o fato de ser observado por um único ouvinte por vez posicionado a meros três passos do piano fez da minha respiração um instrumento, o mais sútil dos meus gestos passou a ser tão ou mais relevante do que o meu gesto mais exagerado. Esses são alguns dos muitos exemplos que ilustram o ciclo sistólico-diastólico de captação da ideia → interpretação → incorporação e manifestação. Sem contar os inúmeros exemplos de ideias criativas que vieram de brincadeiras entre o grupo em momentos insuportáveis – desculpas, Sabrina! – de trocas de memes com o Renan (ops, quase dei spoiler!), coisas que observamos durante os ensaios, que descartamos e depois reconsideramos e tantas outras situações.

Penso que a melhor resposta para o que sou ou como me vejo nisso tudo seja, ironicamente, outra pergunta: “O que eu precisei ser?”. Precisei ser um “todo ouvido”, um “Pianista de Arecibo”³ com aguçadas antenas para captar todo e qualquer tipo de Contato e, posteriormente, interpretá-lo. É estranhamente doloroso – estranho porque há prazer em virtude dos ganhos – fazer certas comparações quando nos propomos a relatar nossos próprios processos. Quando lanço um olhar para o meu “eu anterior” ao processo com o grupo vejo-me de certa forma ingênuo, acreditando que materiais criativos ou inspirações viriam corretas de lugares certeiros ou que sentidos semânticos seriam firmados de acordo com estratégias meticulosamente traçadas. Essas, até quando são, acabam não sendo o que deveriam ser. São constatações que corroboram e derivam de experiências passadas com Heitor em outra peça na qual trabalhamos e estreamos – "As gerações dos mortais assemelham-se às folhas das árvores" (2015 – 2017) – mas agora, com mais certeza e consciência da necessidade de afiar minha percepção artística acerca de tudo que me cerca e de ter à disposição infinitas maneiras através das quais essas percepções podem ser expressas com meu instrumento e fora dele, é condição sine qua non. Há um forte teor ecológico no modo como atuo no grupo. Ecológico no sentido de interação com o ambiente, do “estudo da casa”, referindo-me aqui à própria etimologia da palavra ecologia: oîkos + lógos. Uma extrapolação do que vivi em “As gerações dos mortais […]” em virtude da rede de interações entre membros do Coletivo, assistentes, plateias – interações humanas – ser significativamente mais complexa e imersiva, além, claro, das interações com o ambiente, iluminações, objetos, as quais foram bem marcantes em “As gerações dos mortais [...]”. 


Antenas de transmissão da Rede TCM Telecom (Mossoró, Rio Grande do Norte). Fonte: Arquivo pessoal

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¹ Referência a uma cena do livro "O guia do mochileiro das galáxias" (1979) de Douglas Adams (1952 - 2001).
² Ex situ / in situ: expressões em latim que significam, respectivamente, "fora do lugar" e "no lugar".
³ Referência ao famoso observatório de radiotelescópios do projeto SETI localizado em Arecibo, Porto Rico.




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