Caleidoscópio, Parte 1: Identidade

Assim que comecei a escrever esse post lembrei-me do primeiro texto aqui publicado – Que ideia de colaboração? Identidade – da autoria de Heitor Oliveira. Ao relatar sobre ideias marcantes que definiram o Prelúdio, primeira etapa do nosso projeto realizada em Porto Alegre – RS, Heitor mencionou que o cerne da nossa colaboração esteve na convergência de interesses, de tal maneira que houve máxima identificação com o trabalho da parte de todos os envolvidos.




Até o momento, cerca de 60% do nosso repertório é constituído por peças que criamos no decorrer do projeto (Rumos 2017 – 2018, Itaú Cultural). A meu ver, a convergência citada por Heitor somada ao respeito com a identidade de cada um dos membros do grupo fundamenta o que agora começa a despontar como sendo a identidade do grupo.

Em Porto Alegre nossos laboratórios permitiram o reconhecimento de aspectos musicais ligados à personalidade artística de cada um, de características que cada um gosta – em si e no outro – e dos potenciais expressivos e comunicativos de cada um desses aspectos.

Em Mossoró – RN focamos na elaboração de nossas performances e, colateralmente, no desenvolvimento das narrativas que viriam a dar sentido a essas performances. O diálogo – ou mais do que isso, o dialogar – surgiu como uma tônica em nossas atividades. Digo não somente me referindo a um adjetivo que pode sim caracterizar nossas relações enquanto grupo mas, principalmente, como temática na criação coletiva. O duo para piano e flauta – Novos sururus e quiprocós de um convescote chumbrega – alude a um diálogo muito específico, tal como o que ocorre em uma mesa de bar: aquele que fala, ora fica absorto na tentativa de capturar conversas alheias de mesas próximas, ora tenta voltar ao contato direto com sua companhia que, por sua vez, também pode se encontrar absorta mirando o clipe exibido no monitor próximo ao balcão ou mais preocupado em fazer contato visual com o garçom para pedir mais uma cerveja e, claro, ora ambos entram em uma sintonia capaz de fazer todo o entorno deixar de existir. No duo para violões – Tudo é perdido quando o desejo fica repartido – o dialogar ocorre com a tensão, o conflito, o jogo ardil entre um e outro que traz à superfície as microdinâmicas das relações amorosas, a tragédia Shakespeareana.

Em Ribeirão Preto – SP tramas de vários tipos de diálogos ganharam vida com as estreias das Charlas e do Charlatório. Charla é uma palavra que tanto no idioma espanhol quanto no português significa conversa ou bate-papo. Ao todo foram quatro Charlas estreadas, uma para cada instrumentista, pensadas para serem apresentadas em ambientes diferentes de acordo com cada instrumento e de forma intimista, para um único espectador de cada vez. A Charla para piano foi apresentada no palco, no que alguns diriam ser o habitat do instrumento, no entanto, com um colchão colocado abaixo do instrumento, iluminação e caixas amplificadoras preparadas para tocar uma difusão que remete a uma paisagem totalmente estranha àquela que criamos. Eis que o piano não é mais o espécime que esperaríamos encontrar nesse habitat; se não podemos mudar o meio, mudemos a criatura. A Charla para flauta foi apresentada no mezanino do teatro, ambiente aconchegado por sofás, iluminação suave e adornado com utensílios antiquados, contrastando com a potência e a personalidade forte do instrumento de sopro. Nesse ambiente, Gina tocou e se movimentou de uma estante para outra, parando de vez em quando para interagir com um vídeo de si mesma exibido na tela de um notebook. Uma das Charlas para violões interpretada por Sabrina foi apresentada no depósito do teatro com luzes apagadas, vídeos, difusões e um espelho. Renan apresentou sua Charla no pátio do teatro com difusões sonoras, iluminação e cartazes provocativos fixados em seu entorno. Os detalhes de cada uma das Charlas serão apresentadas em textos futuros. Houve então o diálogo do eu-para-eu durante a criação de nossas performances solo, do eu-para-o-outro na relação com o espectador íntimo e do todos-para-todos no Charlatório, peça em que nós quatro nos reunimos no palco tocando nossas respectivas Charlas em um jogo no qual cada um tenta achar espaços na parte do outro para interagir.




Durante a roda de conversas que realizamos após as estreias das Charlas e do Charlatório, um dos participantes propôs uma provocação ao grupo em forma de pergunta: por que apresentar em um teatro, peças que poderiam facilmente ser apresentadas em museus e outros espaços similares de arte contemporânea, dado o seu formato que muito se assemelha às instalações que comumente encontramos nesses ambientes? Até o momento eu não havia sequer cogitado essa possibilidade e me peguei surpreso por se tratar de uma verdade; nossas peças podem realmente se adequar muito bem a esses ambientes apontados pelo participante. Na minha resposta, soltei uma frase a qual saiu com uma estranha-porém-bem-conhecida sensação de lar: “o deslocado, as coisas fora de lugar, isso tudo faz parte da identidade do grupo.” Obviamente essa é a minha visão e certamente – assim espero – há desvios e exageros, mas acho que foi no querer cair fora é que conseguimos estar dentro, é no querer cair que conseguimos voar. Em experiências passadas com Heitor em As gerações dos mortais assemelham-se às folhas das árvores eu já havia percebido que é do deslocar, em todos os sentidos possíveis, é que surgem as frestas para os lampejos criativos, que é da não necessidade em contornar problemas que nasce uma cena, em vez de apartar, abraçamos o obstáculo e o transformamos em uma ideia. O diálogo tonaliza nossas narrativas ao passo que o deslocar faz com que nossos diálogos encontrem um local. Sim, é confuso, tal como a minha escrivaninha, a cadeira que sustenta a bagunça de umas tantas peças de roupa do meu lado, das minhas partituras que disputam espaços em meio a cabos, roupas de cama e copos.




*Experimento da sincronização de 32 metrônomos desordenados: https://www.youtube.com/watch?v=JWToUATLGzs

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