Ao refletir sobre os produtos artísticos provenientes de um determinado processo, ainda mais no contexto de um grupo com tantas interdependências quanto o nosso, sempre me atento às ligações de naturezas interpessoais, os microcosmos que se estabelecem durante nossos trabalhos. São aspectos que, geralmente, aparecem em meus relatos como um enredo que serviu de inspiração para a construção performática de uma peça, traços de personalidades que se firmam em nossas obras ou que são usados como ideia para nossos recursos expressivos. É como se estivéssemos envoltos por uma espécie de “éter” que invade as frestas de nossas discussões e criações, uma espécie de macroestrutura responsável pela amálgama coletiva. Em um texto que escrevi há mais de um ano aqui no blog, eu disse que o “[…] diálogo – ou mais do que isso, o dialogar – surgiu como uma tônica em nossas atividades […]”. Ainda concordo com essa afirmação, no entanto, nossas experiências com Charlatório desvendaram outras dimensões do que eu até então entendia como diálogo.
Quadros do curta-metragem animado "Dimensões do Diálogo" (1982), de Jan Švankmajer (1934). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=L-gGpWpra-g |
Na estreia, em Ribeirão Preto-SP, o processo de criação de Charlatório ainda estava em desenvolvimento. Tínhamos uma ideia sonora da obra – projetada no próprio título – porém, existiam inúmeras indefinições quanto a sua escrita. Decidimos que, naquela ocasião, a performance seria uma experimentação: tocaríamos nossas respectivas Charlas, da capo al fine, simultaneamente, o que então resultaria em sobreposições as quais acreditávamos que seriam satisfatórias para a criação da ideia de um amplo diálogo ocorrendo entre os músicos, o Charlatório, por assim dizer. Algumas conexões foram criadas por Heitor nas partituras das Charlas: Renan, durante a performance de sua Charla, deve simular gestos percussivos no ar com uma das mãos como se estivesse segurando uma baqueta; Sabrina necessita simular arpejos ou rasqueados no ar; e Gina, deve se inclinar em direção ao interior do piano e, com a flauta, tocar sons fortes e agudos separados por pausas. No Charlatório, esses gestos que antes surgiam deliberadamente fora de contexto e até mesmo com certa estranheza durante as performances solo das Charlas, ganham um propósito interativo quando em palco junto ao piano: Renan agora pega uma baqueta de tímpano para efetivamente percurtir sobre as cordas da lira do piano; Sabrina realiza os arpejos e rasqueados diretamente nas cordas e Gina, provoca reverberações ao tocar os sons fortes e agudos inclinada em direção ao interior do piano, enquanto o pianista mantém pressionado o pedal de sustentação do instrumento para que os sons se propaguem.
Na segunda apresentação pública de Charlatório, em Cali, Colômbia, decidimos por outra experimentação: novamente tocaríamos simultaneamente, no entanto, fazendo uso mais livre dos materiais das nossas respectivas Charlas (alterando a ordem, dinâmicas, registros, combinações, etc.), mantendo as conexões gestuais que já estavam escritas nas Charlas de Renan, Sabrina e Gina. Apesar de gostar dos resultados de ambas as experimentações, as relações percebidas entre a experiência de Cali e as demais obras do repertório do grupo, convenceram-me fortemente. A possibilidade de utilização livre dos materiais das nossas Charlas como peças para gerar diálogos, aproximou-me muito do jogo que Gina e eu realizamos em Sururus. De certa forma, para mim e creio que também para Gina, foi algo muito familiar; conhecíamos muito bem os materiais de nossas Charlas e quais máscaras ou vestimentas expressivas esses materiais poderiam comportar. Similarmente, Renan e Sabrina também possuíam jogos de diálogos construídos em Repartido. Claro, são materiais e contextos distintos, no entanto, as possibilidades de explorar as expressividades construídas em Repartido com os materiais das Charlas existem. Quero destacar o fato de que há dinâmicas de diálogos consolidadas anteriormente entre Gina e eu e Renan e Sabrina, e cada qual com recursos e estratégias significativamente distintas em relação ao outro.
Nesse percurso – Mossoró/RN, Ribeirão Preto/SP e Cali/Colômbia – , é criada uma macroestrutura ou continuum que atribui integridade, motivos e motivações ao nosso trabalho e, consequentemente, aos nossos produtos artísticos: os duos (Sururus e Repartido) criam e exploram dinâmicas de diálogos através de parcerias específicas entre integrantes; as Charlas, peças solo para cada um dos instrumentos, permitem a exploração de nossas expressões identitárias e pessoais, acentuadas pelo fato de que, em cada uma das obras, encontram-se presentes materiais de naturezas íntimas de cada um dos intérpretes; e o Charlatório, por sua vez, é o momento para que ambas as dimensões – individuais e interpessoais – sejam compartilhadas e discutidas para a criação de uma dimensão coletiva de diálogo. O uno, duo e o multi!
Comentários
Postar um comentário