Charlas: planejamento e escrita

A proposta de compor uma série de peças solo dedicadas a músicos específicos aparece pela primeira vez em minhas anotações em setembro de 2015: uma entrada isolada no diário de bordo de composição deixou a ideia registrada. Essa primeira anotação já continha alguns pontos que foram mantidos para o processo mais recente de escrita das charlas. A situação cênico musical é de conversas informais e musicalmente organizadas, utilizando sonoridades instrumentais e da voz falada. Ainda previa que o intérprete manejaria, sozinho, diferentes fontes sonoras e objetos.

Ao formular o planejamento composicional geral para o projeto, apresentado aos demais membros do Coletivo N·S·L·O em novembro de 2018, essa antiga proposta foi acoplada à noção de performances musicais intimistas. Foi explicitada a necessidade de relacionar cada peça às trajetórias e particularidades de cada intérprete. Trabalhamos nas oficinas de criação colaborativa daquele primeiro encontro a partir da pergunta/provocação: Como apresentar cada um em seu melhor? E os músicos ficaram ainda com a tarefa de enviar, para mim, subprodutos das suas pesquisas, materiais gerados como parte do processo de investigação, mas que acabaram não integrando seus resultados finais.

As charlas acabaram por resultar de um emaranhado de regras auto-impostas e colagens de distintos materiais e narrativas.

Concepção do evento

Em Mossoró-RN, em março de 2019, o grupo debruçou-se sobre a questão de como seria o evento no qual as charlas seriam apresentadas ao público. Na ocasião, como fruto de uma roda de conversa em que todos contribuíram, solidificou-se o conceito do evento imersivo e interativo que posteriormente denominei charlatório: o público circula pelo espaço, deparando-se com os músicos, tarefas inusitadas e pistas para mais informações; as charlas são apresentadas individualmente repetidas vezes até que, ao final de uma duração pré-determinada, os músicos se dirigem para o local onde está o piano para voltar a tocar os materiais musicais de suas charlas, mas agora em conjunto.

Assim, a conversa gerou demandas composicionais, ou seja, situações que era necessário resolver no planejamento e escrita das peças. Seria necessária a proposição de dispositivos para organizar a inserção e circulação do público no evento, inclusive levando em conta seu envolvimento nos possíveis períodos de espera. Além disso, construir relações entre as charlas, para instigar o ouvinte a buscar conexões e fundamentar a construção do episódio final, de execução coletiva.

Estrutura I: o planejamento inicial de ações comuns

Uma das ideias centrais no planejamento estrutural para escrita das charlas foi que as quatro peças deveriam possuir ações em comum. A inserção das ações comuns em cada charla, entretanto, segue a lógica interna de seus materiais musicais e narrativos, resultando em maneiras e contextos específicos de realização dessas ações. As ações em comum, definidas no planejamento, são: utilizar um áudio em mídia fixa; entregar um papel ao espectador; dizer algo olhando diretamente para o espectador.

Ao longo do trabalho de escrita, o compromisso com a inserção dessas ações era ao mesmo tempo um aspecto limitador e organizador do desenvolvimento dos materiais musicais de cada peça. Tornou-se, assim, um fator primordial para transformar a ideia mais geral de peças solo na construção de uma série auto-contida e integrada à proposição de um evento em que a própria relação compositor-performer-público é objeto do processo criativo.

Material melódico-harmônico

O material melódico-harmônico das charlas deriva de uma série de 12 arpejos. Os arpejos foram inicialmente escritos como variações de um mesmo gesto, imaginado para a charla da flautista Gina Arantxa.

Anotações do compositor no Caderno Rialto 2019, em 14 de maio de 2019: os 12 arpejos que constituem o material melódico-harmônico desenvolvido no planejamento para escrita das charlas.

Posteriormente, passei a escrever outras realizações rítmicas e texturais dos materiais harmônicos de cada arpejo, resultando em 10 grupos de variações do material melódico-harmônico utilizadas posteriormente na escrita das charlas.

Anotações do compositor no Caderno Rialto 2019, em 4 de junho de 2019: linhas melódicas.

Na imagem acima, um dos grupos de variações desdobrados dos materiais originais ainda na fase de planejamento. Essas versões dos materiais melódico-harmônicos voltam a ser reelaboradas na escrita de cada charla, adaptando aos idiomatismos instrumentais, texturas e ideias rítmicas pertinentes às distintas narrativas.

Situação cênico-musical: o leiaute de cada charla

O princípio de ter elementos comuns realizados de maneiras peculiares em cada charla também guia o planejamento da organização dos espaços de performance. Sendo todas pensadas para cenários intimistas, cada charla explora uma disposição entre performer e a pessoa que lhe assiste.

Leiaute charla #1
Na charla #1, concluímos que a posição da pessoa deve privilegiar a visão das mãos do pianista. A proximidade não é tão grande como nas charlas de violonistas. Assim, fica garantido o deslocamento do pianista e um ângulo em que a pessoa tem o quadro do piano como um todo. Ao mesmo tempo, é uma proximidade bem maior que nos recitais tradicionais, permitindo a escuta de nuances e ressonâncias e a visualização das posturas e reações do pianista. 

Leiaute charla #2

Na charla #2, a flautista se desloca ao longo da performance, posicionando-se em diferentes ângulos em relação à pessoa que lhe assiste. De sua posição fixa, ela vê a tela do notebook e a flautista, ora de costas, ora de perfil, ora de frente. 

Leiaute charla #3
Na charla #3, o performer e a outra pessoa sentam-se lado a lado. A quebra da frontalidade (ainda preservada de alguma forma nos demais leiautes), cria um vínculo de informalidade e cooperação.

Na charla #4, a pessoa vê performer e tela de notebook de um ângulo perpendicular. Na sessão final, a performer vira-se de frente para a pessoa, mas certo distanciamento é mantido pela interposição do espelho.

Leiaute charla #4
A variação das disposições espaciais é um aspecto composicional relevante para a construção das charlas como série de peças e do evento charlatório como exploração das possibilidades de experiência estética com a performance musical.

Estrutura II: os materiais individuais e a narrativa de cada charla

Dentre os materiais enviados por cada músico, selecionei alguns que acabaram tendo papel fundamental na construção da narrativa/forma de cada charla e de toda a série.

Gina enviou um áudio, que continha um texto e, por si mesmo, uma estrutura para a charla, já que alternava falas e execução à flauta. Assumi essa estrutura, inserindo meus materiais musicais, e também o fato de sua ideal original conter a citação de uma peça musical pré-existente. Pareceu-me tão forte e apropriado para a proposta da série, que solicitei aos demais que também enviassem trechos prediletos de obras tonais de seus repertórios (mais sobre esse aspecto abaixo). Acabei solicitando à Gina que gravasse parte de seu texto em um vídeo. Na charla #2, esse vídeo é reproduzido na tela de um notebook, e o texto original é performado como diálogo entre duas manifestações da Gina, uma na tela, outra presente.

Dario enviou gravações feitas no contexto da sua pesquisa ─ conversas com compositores e estudo de trechos ─ e também de seu cotidiano. A sua gravação de sons de sino, ouvidos ao caminhar pela Av. Oswaldo Aranha, em Porto Alegre, pareceu-me convergir com a exploração de ressonâncias e o percurso pelas partes do instrumento que eu explorava ao iniciar a escrita da charla #1 (ver diagrama abaixo). O conteúdo dessa gravação, processado e editado, constituiu o áudio em mídia fixa usado na peça. Mais que isso, a noção de um percurso de explorações e escutas de ressonâncias constitui o substrato imaginativo que impulsiona o avanço da escrita e a organização dos sucessivos episódios.

Diagrama de vistas inferior e superior do piano, com delimitação de áreas para execução percussiva na charla #1.

Desde a primeira oficina presencial do Coletivo, já havia definido para mim mesmo que a frase "todo mundo tem um dedo bom e um dedo ruim", dita por Renan ao explicar informalmente os resultados de sua pesquisa sobre a coordenação entre as duas mãos na execução violonística, seria incluída no roteiro de sua charla. À medida que a colaboração gravitava na direção de apresentar dados isolados de um tema tão técnico como materiais da performance, Renan enviou também um áudio com exercícios violonísticos propostos aos sujeitos de seu estudo e trechos de entrevistas. O áudio, conforme editado originalmente por Renan, foi submetido processamentos adicionais, assumindo, entretanto, sua duração total e suas sessões como estrutura da própria charla #3. A escrita para o instrumento é sobreposta a essa estrutura. Fotos de mão esquerda dos sujeitos enquanto tocam violão e reproduções de gráficos com síntese de resultados quantitativos de etapas da investigação foram utilizadas para compor o cenário visual da performance.

A narrativa da charla #4 também origina, para mim, com uma frase dita por Sabrina ainda na nossa primeira oficina: "Já é uma preocupação a menos". Ainda que eu não saiba bem definir como essa frase se traduz em outros elementos concretos da peça, ela sintetiza a atitude de proatividade e determinação (talvez correndo risco de ansiedade?) da figura cênico-musical que eu tinha em mente ao trabalhar na roteirização dessa performance. Posteriormente, Sabrina enviou vídeos gravados durante sua pesquisa de mestrado. Nos vídeos, trechos de uma nova peça para violão são trabalhados e ajustados gradativamente. O aspecto que chamou minha atenção é tangencial: o fato de que os vídeos foram gravados em ângulos ligeiramente diferentes. Na edição preparada para a charla #4, esses ângulos são apresentados em sucessão e observados atentamente pela própria Sabrina, chamando atenção para sua função de ferramenta de auto-observação e estudo. A edição de vídeo, sobreposta em determinado momento por um áudio resultante do processamento de fragmentos dos trechos violonísticos presentes nos vídeos originais, constitui a estrutura da charla, ou seja, delimita sua duração e sessões. O desdobramento da escrita dos materiais instrumentais é orientado por esta moldura.

Dialogando com os trechos prediletos

A inserção de citações de trechos de obras tonais dos repertórios dos performers ocorreu nos últimos momentos do planejamento da série. Decorreu da decisão de utilizar o material enviado por Gina como estrutura para sua charla. Seu texto dizia "E agora a grande Chiquinha, a grande Gonzaga", seguido da execução de um trecho de Corta-jaca. Para manter o texto, seria coerente manter a citação musical. E, assim, na última hora, decidi que este deveria ser mais um elemento comum às charlas: cada uma deveria ter uma citação musical.

O envio de trechos prediletos deu mais concretude a questões que haviam sido discutidas desde o início do projeto, como as preferências e interesses sonoros e técnicos de cada um em relação ao seu instrumento. Assim, por exemplo, constatei que quase todos os trechos escolhidos por Sabrina eram escritos com a afinação da sexta corda do violão em Ré, levando-me a adotar essa mesma configuração harmônica do instrumento para a escrita de sua charla.

Em todas as charlas, as citações são apresentadas em simultaneidade com outras sonoridades. Na charla #2, enquanto Gina toca o Corta-jaca, o vídeo reproduz as imagens e músicas de duas gravações caseiras da própria flautista dançando salsa. O momento evoca e mistura heranças culturais, inspirações emotivas e fragmentos autobiográficos. Nas demais charlas, as partituras solicitam que o performer fale enquanto toca as citações, comentando, de improviso, aspectos técnicos ou expressivos.

Outro aspecto dos uso das citações, especialmente nas charlas #1, #3 e #4 foi a construção de relações, na escrita, entre materiais musicais dessas citações e os materiais musicais criados originalmente. Na charla #1, há uma conexão de registro e harmonia entre o final da citação de Ravel e o trecho que segue. Na charla #3, a figuração violonística do início da citação é antecipada no trecho anterior. Na charla #4, a figuração introduzida ao final da citação é retomada com o material harmônico original da charla, longo em seguida à citação e em trecho posterior.

A realização das ações comuns em cada charla

Devido ao desenvolvimento dos materiais e narrativas peculiares a cada charla, a ideia inicial de ter ações comuns realizadas de maneiras específicas, desdobrou-se naturalmente.

Na charla #1, o áudio em mídia fixa entra em um trecho específico, trazendo as ressonâncias dos sons gravados de sino para o mesmo espaço das ressonâncias de ataques percussivos em diferentes partes piano. Dario diz à pessoa que o assiste: "Esse é o sino da Oswaldo Aranha". A frase soa como um pretenso e vago esclarecimento sobre o trecho da performance. A ação de entregar o papel à pessoa é realizada por Dario já próximo ao final da peça, contendo um convite para a pessoa se deitar sob o piano, como ele próprio inicia a performance. O convite expande a experiência e cria um vínculo entre o performer e a pessoa, na medida em cooperam para completar o percurso físico e auditivo da charla.

Na charla #2, a ideia do áudio em mídia fixa desdobra-se em um vídeo em mídia fixa, contendo diálogo em primeiro plano e sequências de dança e música salsa, do acervo pessoal de Gina, em segundo plano. O vídeo alterna com ou sobrepõe-se à performance instrumental. Gina diz várias frases pertencentes ao texto base da peça, olhando para o espectador, postura que permite ter uma leitura dupla da ação, como diálogo consigo mesma e como compartilhamento com o outro. O papel entregue por ela ao espectador convida-o a interagir com sons, imagens e performer, na sessão em que ela executa a citação musical de Chiquinha Gonzaga. 

Na charla #3, a frase "todo mundo tem um dedo bom e um dedo ruim" é dita por Renan logo no início da performance, estabelecendo uma moldura vaga de sentido para o seu todo. O áudio em mídia fixa acompanha a performance desde seu início. A relação de sincronia entre o áudio e a execução instrumental é ora métrica, ora flutuante. Ao entregar o papel para a pessoa, Renan também lhe entrega uma lanterna. A instrução é para iluminar as paredes, revelando em maiores detalhes as fotos e gráficos que compõem o cenário da charla.

Na charla #4 a ideia do áudio em mídia fixa também é realizada como vídeo, com as imagens da própria Sabrina estudando violão. O fato de que essas imagens são como um reflexo é explicitado em momento posterior, quando ela entrega um espelho e o papel com a instrução para que a pessoa segure este objeto de frente para ela. A performance se organiza com alternância entre a execução instrumental e as intervenções de imagens apresentadas no vídeo. A partir da entrada do áudio, há sobreposição dessa difusão sonora com a execução instrumental ao vivo, intensificando e adensando a textura da peça. A frase "Já é uma preocupação a menos" é dita nessa segunda metade da peça e, na comparação com as demais charlas, talvez seja a que recebe menos ênfase e parece ter menor relação direta com o transcorrer imediato da performance. 

Estrutura III: ações e materiais convergentes

Um aspecto final da estruturação formal das charlas foi a inserção de ações e materiais musicais cujo sentido se completaria na música coletiva do charlatório, ao final do evento. O piano funciona como epicentro e há como que pontas propositalmente soltas que são entrelaçadas na execução coletiva, construída por meio da improvisação com materiais das charlas individuais.

Assim, na charla #1, há um momento em que o pianista abaixa um grupo de teclas sem soar as notas. No charlatório, essa ação é complementada pela flautista, que caminha para o perto do instrumento e executa um de seus arpejos da charla #2 e provoca a vibração por simpatia das cordas liberadas pelo pianista. Nas charlas #3 e #4, os violonistas fazem gestos com uma das mãos no ar, sem produção de som. Os mesmos gestos, quando repetidos no charlatório, correspondem à geração de som pela manipulação direta de cordas do piano com baqueta (Renan) ou diretamente com o dedo (Sabrina).

Além disso, há diversos cruzamentos entre os materiais musicais de cada charla de tal forma que, no charlatório, os músicos podem criar trechos em uníssono, ou em diálogos contrapontísticos.


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